Quem nunca contou uma mentirinha no primeiro encontro para parecer mais legal (ou menos chato) para a garota ou garoto que se estava cortejando? Certamente que é algo extremamente comum a todos aqueles que experienciaram a paixão na adolescência e até mesmo depois dela, afinal, é algo que nos parece tão comum que podemos até dizer ser “normal”, embora não muito ético.

Uma corroboração desse fato, ou melhor, uma versão mais antiga, medieval, do mesmo comportamento foi-nos transmitida através de alguns escribas árabes e definitivamente “encontrada” em 1951, numa descoberta arqueológica feita no interior da Turquia. Trata-se de uma carta, cujo remetente, uma rainha franca, enviou-a ao Califa de Bagdá, al-Muktafi Billah, acompanhada de variados, luxuosos e excêntricos presentes, para pedir a mão de um dos vassalos de al-Muktafi, o Emir de Ifriqya (região do Norte da África que engloba a atual Tunísia e partes da Líbia e Argélia). Houve a publicação do trabalho e da carta em 1953 por Muhammad Hamidullah (“Uma Embaixada da Rainha Bertha ao Califa al-Muktafi billah”). A carta fazia parte de um trabalho maior Kitab al-dhakha'ir wa'l-tuhaf, escrito por Qadi al-Rashid ibn al-Zubayr, que foi publicado por Hamidullah em 1959.

Só havia um problema: a “rainha franca” não era rainha e, apesar de ser franca, não governava sobre um território franco. O que, afinal, dizia essa carta? Quem é essa mulher que tentou impressionar o Califa fazendo-se passar por uma poderosa rainha? Quais eram os presentes e o que se deu após tudo isso? É o que veremos a seguir, contando com a tradução da carta na íntegra ao final do texto.

Esta mulher é ninguém menos que Berta (863 / 868 – 925), a segunda filha ilegítima do rei Lotário II da Lotaríngia (região que hoje engloba partes da França, Alemanha, Suíça, Holanda e Bélgica) com sua concubina Waldrada (de origem nórdica ou germânica). A Lotaríngia foi um dos reinos que sucederam o Império Carolíngio após a morte de Carlos Magno (seguindo o costume franco-germânico de dividir as terras e possessões entre os filhos), junto com a Germânia e a Frância, além do reino menor da Provença, sendo a Lotaríngia o mais próspero reino-sucessor dos carolíngios, tendo herdado também sua suntuosa capital, Aix-la-Chapelle. Berta, apesar de ser tida como ilegítima, conseguiu tomar seu rumo em meio aos casamentos arranjados da época: através do matrimônio, tornou-se condessa de Arles pelo casamento com Teobaldo de Arles (que morreu em 895). Depois disso, ela se tornou margravina (ou seja, algo como uma marquesa) da marca da Toscana por casamento (entre 895 e 898) com Adalberto II da Toscana, conhecido por ser detentor de grande riqueza, incluindo de escravos. Após a morte de Adalberto no ano de 915, ela serviu como regente de Lucca e da Toscana até 916, durante a menoridade de seu filho Guy, nato de seu matrimônio com Adalberto.

Acontece que, em 906, ela parece ter escrito uma carta endereçada à maior autoridade do mundo islâmico da época, o Califa al-Muktafi, assentado em Bagdá e líder religioso e político de todo o mundo islâmico (uma vez que, como Califa dos Sunitas, presidia sobre as matérias espirituais, além de ser o soberano de todos os emires sunitas do Califado Abássida), pedindo a mão de Ziyadat-Allah, o (último) governante da Dinastia Aglábida do Emirato de Ifriqya, no Norte da África (de onde vem o nome Ifriqya, a propósito) ainda que – atenção! –, estivesse ainda casada com seu marido, Adalberto da Toscana (Adalberto morreu em 915, sua carta foi enviada em 906). Além disso, na carta, Berta se autointitulava “a Rainha dos Francos”, possivelmente querendo crescer sua posição de uma simples condessa para uma que julgasse mais digna e proveitosa, afinal, ela era filha de Lotário II da Lotaríngia, que era um reino franco!

Berta, no entanto, provavelmente pode ter sido mais esperta do que julgamos (apesar disso não ter feito diferença no final, e veremos o motivo): ao denominar-se “Rainha dos Francos”, talvez ela não quisesse passar-se por soberana do reino de seu pai, mas sim “dar um perdido” no Califa (que estava a milhares de quilômetros de distância) fazendo seu pequeno condado italiano tornar-se um reino.

Havia também acontecido, ainda sob o reinado de Carlos Magno, uma curta aliança Abássida-Carolíngia, buscada e potencializada pelo Califa Harun al-Rashid. Em 802, Harun enviou a Carlos Magno um presente composto de sedas, candelabros de latão, perfume, bálsamo, peças de xadrez de marfim, uma tenda colossal com cortinas multicoloridas, um elefante e um relógio de água que marcava as horas jogando bolas de bronze em uma tigela, enquanto cavaleiros mecânicos — um para cada hora — emergiam de portinhas que se fechavam atrás deles. Os presentes não tinham precedentes na Europa Ocidental e podem ter influenciado a arte carolíngia. Essa troca de embaixadas deveu-se ao fato de Harun estar interessado, como Carlos Magno, em subjugar os Emires Omíadas de Córdoba, na Andalusia, além da inimizade comum contra os bizantinos.

Também acontecia que “franco” era um termo guarda-chuva dos árabes para tudo aquilo que era europeu e católico. "Franco" (em árabe franj) é o nome de tudo que é europeu e cristão católico-romano (com os gregos cristãos-ortodoxos sendo chamados de "rum", palavra árabe para "romanos"), então não necessariamente um “franco” se refere a um francês medieval, descendente do homônimo povo germânico, mas a diferentes povos de diferentes línguas europeias ocidentais que compartilhavam a mesma fé católica.

Outra prova cabal de que seu objetivo não era simplesmente arranjar um marido exótico e moreno se refere a um dos conteúdos da carta e quem a entregou: a libertação de todos os prisioneiros muçulmanos em poder dos toscanos que estava na carta entregue pelo eunuco Ali, ele mesmo um prisioneiro. O eunuco Ali era um comandante da marinha aglábida que foi enviando junto ao comando de uma frota que atacou a Grécia, tendo caído prisioneiro nas mãos dos francos e, assim, chegado às mãos de Berta da Toscana. Como pode ser notado, Ali servia a mesma dinastia que Berta estava tentando entrar, que anos antes (7 anos, para ser preciso, é o número de anos que Ali teria passado cativo sob os toscanos) havia atacado terras bizantinas. De início, tal ataque pode parecer apenas uma operação de saque, comum a milênios no Mediterrâneo, mas não era: o ataque onde Ali foi capturado muito provavelmente era parte das guerras de conquista dos Aglábidas contra as possessões dos bizantinos no Mar Mediterrâneo, que iniciaram-se em 870 com a conquista aglábida de Malta e continuaram até mais ou menos por volta 902, quando o Emir Ibrahim III morreu enquanto cercava a cidade de Cosenza, na Calábria; em 909, apenas três anos após a embaixada de Berta, a Dinastia Aglábida foi findada.

Todas essas campanhas, no entanto, refletiam uma política coordenada de ataque aos bizantinos pelos árabes: em 905, apenas um ano antes da embaixada de Berta, o Califa al-Muktafi atacou e saqueou a cidade de Tessalônica, na Macedônia Grega. Desse modo, é plausível pensar que na realidade, Berta não estava, como dissemos acima, em busca apenas de um casamento (até porque ela já tinha um), mas buscava o casamento: apesar de estarem com dificuldades no controle de Ifriqya frente as tribos berberes do Oeste, os Aglábidas ainda assim eram temidos entre os italianos, que temiam a conquista muçulmana como um perigo iminente. Além disso, pode-se dizer que os Aglábidas ainda estavam em seu apogeu, dominando além da Ifriqya as ilhas da Sicília, Sardenha, Córsega, Malta e fazendo incursões na Itália continental e na Grécia, posicionando-se entre os "quatro grandes" da época, que eram o Califa de Bagdá, o Emir da Andalusia, o Imperador Germânico e o Imperador Bizantino. Talvez tendo isso em mente, Berta quisesse não apenas tornar-se Emira, mas adiantar essa conquista, conquistando junto dela um posto à altura daquele de seu pai. Assim, podemos especular que além de uma aliança militar e dinástica com os aglábidas, Berta visava também aproveitar-se de um fato tido como inevitável nas mentes dos italianos da época.

Foi assim que, no ano de 906 da Era Cristã e 293 depois da Hégira que uma embaixada a mando de Berta “dos Francos” chegou à corte de al-Muktanfi em Bagdá. Ela contava com um cortejo de escravos “suavos” (eslavos, na época o tráfico de eslavos estava fervilhando, especialmente na Itália, onde Berta era estabelecida) e vultosos artigos de luxo, dentre os quais se destacavam: 50 espadas, 50 escudos, 50 lanças francas, 20 peças de tecido fino com ouro, 20 eunucos eslavos, 20 cortesãs eslavas, 10 cachorros ferozes, 7 falcões, 7 águias, 1 tenda de seda, 20 peças de tecidos provenientes de fios que eram retirados de conchas do mar da região, roupas que mudavam de cor, 3 pássaros francos que (supostamente) gritavam ao ver comida ou bebida envenenadas. A carta que fora enviada junto do eunuco Ali (não se sabe a língua em que estava escrita, se era o latim ou o italiano, uma vez que ela só é referenciada como "a língua dos francos" pelas fontes árabes) foi traduzida por um escravo "franco" da "língua franca" para o grego e, do grego, um escravo "romano" a traduziu para o árabe, enquanto o eunuco Ali ficou encarregado de contar o “segredo” a al-Muktafi (que provavelmente era sua proposta de casamento para com o governante aglábida). Há uma outra versão, no entanto, que diz que os presentes de Berta jamais saíram da Península Itálica, uma vez que Ali temia ser interceptado e capturado por seus antigos mestres aglábidas.

Al-Muktanfi, como era de se esperar de seu cargo, não era bobo nem nada: não caiu na conversa da “Rainha dos Francos”, mesmo com seus fabulosos presentes (ou não). Em “A vida de al-Muktafi”, que também contém a resposta do califa a Berta, diz o califa:

“com todo o respeito, eu sei que você não é nenhuma rainha dos francos”

Além disso, ela também contém informações sobre o retorno do eunuco e da embaixada de Berta: parece-nos que o eunuco não sobreviveu à viagem de regresso. O califa al-Muktafi também não viveu muito mais. Berta, aparentemente, viveu mais que todos eles. O que aconteceu com os escravos eslavos, provavelmente nunca saberemos.

A carta de Berta:

“Em nome de Deus, o Misericordioso e Gracioso. Que Deus o proteja de todos os seus inimigos, ó rei excelente em autoridade e poderoso em senhorio, que Ele assegure seu reino e a ti, saudável de corpo e alma.

Eu Berta, filha de Lotário, rainha de todos os francos (!), lhe saúdo meu senhor rei. Havia amizade entre mim e o rei de Ifriqiyah, pois até agora eu não suspeitava que houvesse um rei maior do que ele na Terra. Meus navios, tendo saído, pegaram os navios do rei de Ifriqiyah, cujo comandante era um eunuco chamado Ali: eu o fiz prisioneiro junto com cento e cinquenta homens que estavam com ele em três navios e eles permaneceram presos por mim por sete anos. Achei-o inteligente e de estudo rápido e ele me informa que você é o rei de todos os reis [muçulmanos]; e embora muitas pessoas tenham visitado meu reino, ninguém me contou a verdade sobre você, exceto este eunuco que [agora] traz minha carta para você. Enviei com ele presentes de várias coisas que são encontradas em meu país para honrá-lo e obter sua amizade; consistem no seguinte:

  • Cinquenta espadas;
  • Cinquenta escudos;
  • Cinquenta lanças (do tipo usado pelos francos);
  • Vinte vestes tecidas em ouro;
  • Vinte eunucos suávicos;
  • Vinte belas e graciosas escravas suávicas – dez grandes cães contra os quais nenhuma outra fera pode resistir;
  • Sete falcões;
  • Sete gaviões;
  • Um pavilhão de seda com o aparelho associado;
  • Vinte peças de lã produzidas a partir de uma concha extraída do fundo do mar nestas paragens, com cores iridescentes como as do arco-íris, mudando de cor ao longo do dia;
  • Três pássaros (da terra dos francos) que, ao verem comida e bebida envenenada, soltam um grito horrível e batem as asas, para que essa circunstância seja conhecida;
  • Contas de vidro que desenham flechas e pontas de lança sem dor, mesmo que a carne tenha crescido ao redor.

Ele [o eunuco Ali] me informou que há amizade entre você e o rei dos bizantinos que reside em Constantinopla. Mas meu domínio é maior e meus exércitos mais numerosos, pois meu senhorio compreende vinte e quatro reinos, cada um dos quais tem uma língua diferente da do reino que está próximo a ele, e no meu reino está a cidade de Roma, a Grande. Deus seja louvado.

Ele me falou de você e que seus assuntos estão indo bem, enchendo meu coração de satisfação enquanto peço a Deus que me ajude a obter sua amizade e um acordo entre nós por quantos anos eu viver: isso depende de você. Este acordo é algo que ninguém na minha família, no meu clã ou na minha linhagem jamais buscou; ninguém nunca me informou sobre seus exércitos e o esplendor em que você se encontra até que este eunuco que eu enviei a você me informou.

Agora, então, ó Senhor, pela graça de Deus, que [um] grande bem-estar esteja sobre vós.

Escreva-me sobre o seu bem-estar e tudo o que você mais precisa do meu reino e do meu país através deste eunuco. Tudo. Não o mantenha ao seu lado, para que ele possa [voltar e] me trazer sua resposta. Aguardo sua chegada. Também lhe confiei um segredo que ele lhe dirá quando vir seu rosto e ouvir suas palavras, para que esse segredo fique entre nós, pois não quero que ninguém saiba, exceto você, eu e este eunuco aqui.

Que a maior saúde de Deus esteja sobre você e os seus e que Deus humilhe seus inimigos e faça seus pés os pisotearem.

Saudações!”

Bibliografia

HAMIDULLAH, Muhammad (1953). “Embassy of Queen Bertha of Rome to Caliph Al-Muktafi Billah in Baghdad.” Pakistan Historical Scoiety Journal, Karachi.

“Bertha the Soon-To-Be Queen of the Franks and Her Muslim Diplomacy with Suavic Presentsby torino (2019) – In Nomine Jassa.

MARÇAIS, Georges, "Aghlabids" - Encyclopedia of Islam, 2nd ed., Vol. I.